Filhos da rejeição.
Era uma segunda-feira. A Norte, em algumas aldeias, a Páscoa celebra-se numa segunda-feira. Era dia da visita Pascal, do beijar de Cruz, tradição predominante na zona Norte. A família reunida na sala, entre conversas e risos, esperando o compasso, o padre e a Cruz, enquanto na televisão se debatia a adopção e o abandono de crianças. Ela, uma menina renegada pelo pai e pela mãe, acabou acolhida no seio da família de uns tios. Ela, uma menina nos seus dez anos, escuta atentamente o que se diz na televisão. Estremece com o que ouve e, sem que ninguém contasse, deixa escapar um desabafo, um sentimento, que jamais esquecerei Pelo menos foi trocada por um cão, que é fofinho, eu fui trocada por meia dúzia de galinhas. Um pano de silêncio caiu na sala. Os olhares voltaram-se para aquela menina de dez anos. Ela riu-se quiçá, para fugir aos olhares e os espaços da sala preencheram-se com os risos dos adultos. Regressou-se à normalidade da festividade. Ela abandonou na sala e foi brincar com os primos recém-chegados.
Gelei com aquelas palavras. Voltei-me para a televisão e continuei a assistir ao debate, onde se contavam histórias de meninos e meninas pela segunda vez abandonados, trocados. Porque as notas eram más, porque o cão e a criança não se adaptaram, porque o menino é demasiado difícil e a menina muito doente. E, para mim, nenhuma justificação fazia sentido para tamanha crueldade...
Quero adoptar ou simplesmente acolher, dar esperança a uma criança, constrói-lhe um futuro, tal como a esta menina. Quero, um dia, conseguir fazer os mesmo que os seus pais fizeram, devolvendo-lhe os sonhos e a vida. Quero. É um dos meus maiores sonhos.
(Adoptados e abandonados pela segunda vez in Diário de Notícias)
Não compreendo estas notícias. Não compreendo como alguém que se diz (ou pretende ser) mãe ou pai conseguem cometer tamanha crueldade. Não compreendo. Não faz sentido.
O caminho não é fácil, não pode ser. Estes meninos e meninas carregam pesadas histórias para conseguirem tornar o caminho fácil a quem os acolhe. Nada pode justificar um novo abandono... nem o cão, nem as notas, nem o perfil rebelde. Será que, sendo filhos biológicos, gerados por si, também os abandonariam porque o menino é alérgico ao cão ou porque a menina é de personalidade rebelde? Realmente, julgam que por terem sido abandonados, serão crianças dóceis e afáveis, a mendigar por amor? Será que, em algum momentos, os pais que quiseram estas crianças e os voltaram a abandonar tentaram compreender, sentir ou perceber o que sentem? Ou, imaginaram como é viver e crescer numa instituição... Certamente que não. Porque, se realmente fizessem tão simples exercícios, entenderiam a revolta da rejeição e a dor do abandono.
Para quem tenciona adoptar ou acolher, como eu desejo, fica a dica: o caminho não será, provavelmente, fácil porque, nem a vida não foi meiga para estas crianças. Sei que, no dia em que alcançar este sonho (e, sinceramente, não me interessa a idade da criança, nem a cor ou a doença) irei chorar muito, ter várias dores de cabeça, muitas palavras más e indiferença à mistura mas, com o amor, paciência e tempo, acabarei por acalmar a criança que quero acolher e, acima de tudo, sem distinguir a criança adoptada da criança biológica. Porque, um coração cheio de amor, não distingue origens - como dizia a mãe da menina trocada por um punhado de galinhas...
- As crianças não são livros de colorir. Não podemos dar-lhes as nossas cores preferidas.
O Menino de Cabul,
Khaled Hosseini
* (provavelmente é uma comparação meia ridícula (ou totalmente) mas, num país que mal consegue proteger as crianças de novos abandonos, que as atira a uma instituição e pouco se preocupa com o seu destino, como raio queremos proteger os animais? choca-me a falta de indignação, a falta de medidas, que ninguém queira saber destas crianças e do futuro das mesmas... desculpem mas, existem coisas que me custam aceitar e, certamente esta é daquelas que mais me custa.)